Carlos Chagas
Desde que o mundo é mundo as primeiras versões da História costumam ser escritas pelos vencedores. Mais tarde, ainda que não em todos os casos, a verdade vai sendo reposta e diversos capítulos acabam refeitos por pesquisadores, em grande parte isentos, ou até por inusitadas descobertas, favorecendo o futuro pela revisão do passado.
Acontece que o Brasil é um país singular. Na visão de mestre Gilberto Freire, aqui tudo pode acontecer, até um dia o Carnaval cair na Sexta-Feira da Paixão. Por conta dessa peculiaridade, estamos há quinze anos assistindo parte da História ser escrita pelos perdedores.
Falamos de mais um aniversário do Plano Real, transcorrido no primeiro dia deste mês, cujas comemorações abrem espaço para um sorridente campeão chamado Fernando Henrique Cardoso, estendendo-se ao mesmo tempo espaço para aventureiros, especuladores e governantes que, a pretexto de combater a abominável inflação anterior, apoderaram-se da economia e das riquezas nacionais. Assim como da memória de seus contemporâneos.
Começa que o Plano Real foi fruto da decisão de um presidente da República hoje propositadamente esquecido pelos que se apoderaram de sua iniciativa. Chama-se Itamar Franco. Foi ele que, depois de duas escolhas fracassadas, impôs a Fernando Henrique a obrigação de abandonar coquetéis e banquetes à sombra do Itamaraty para tornar-se ministro da Fazenda, com a missão específica de debelar a inflação. Era aceitar ou voltar a um mandato terminal no Senado, para o qual não se reelegeria. Nomeado à revelia, quando se encontrava em Nova York, nadou para não naufragar. Teve méritos, é claro, por haver vislumbrado na nomeação a chance futura de tornar-se candidato à sucessão presidencial, bem como por reconhecer que pouco entendia de economia e, assim, convocar gente com capacidade para tentar o impossível. Chamou Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco, Edmar Bacha e outros interessados no sucesso da empreitada, menos para enriquecer suas jovens biografias, mais por vislumbrarem na tarefa a oportunidade de acontecer o mesmo com suas contas bancárias. Não é por acaso que quase todos transformaram-se em mega-consultores e banqueiros de mega-bancos sem correntistas, alguns morando hoje na Inglaterra.
O plano de contenção inflacionária deu certo, mas, embutido nele veio o ovo da serpente. Para nós, aqui de fora, tudo parecia melhor do que a permanência de uma inflação beirando os oitenta por cento ao mês. Só que dentro da fórmula salvadora estava um conluio entre seus artífices e o ministro da Fazenda: para este, a avenida aberta até a sucessão presidencial. Para aqueles, o enriquecimento a partir da entrega da economia nacional ao estrangeiro, ainda que Pedro Malan possa ser tido como exceção por não ter-se transformado em banqueiro de luxo.
O Plano Real extrapolou da eficaz mudança nominal da moeda e dos filigranas correspondentes. Ficou óbvio que mais pretendiam seus mentores, a começar por FHC: utilizar o sucesso como gazua para a entrega do país ao “consenso de Washington”, ou seja, permitir a alienação do patrimônio público às multinacionais e ao capital privado nacional - o que deu no mesmo. Era esse o preço a ser pago pelo sociólogo antes socialista para vencer as eleições presidenciais: aproveitar a chance de entregar a economia nacional ao estrangeiro. Mudar a Constituição, derrubar as barreiras que sustentavam a frágil soberania do Brasil - tudo sob o rótulo de Plano Real.
Itamar Franco bem que percebeu o alçapão em que o tinham colocado, mas não dava mais para voltar atrás. Sob resistências de Fernando Henrique, nomeou Rubem Ricupero para o ministério da Fazenda quando da desincompatibização do titular para concorrer ao palácio do Planalto. O embaixador conseguiu olhar mais adiante e percebeu onde as coisas iriam dar. Na mesma hora armaram contra ele, levando-o à exoneração. Quem armou? A aliança entre as elites famintas de sugar o patrimônio público, os tecnocratas sem pátria, ávidos de tirar proveito de seu bem engendrado programa, e os penduricalhos entusiasmados em deglutir as migalhas do jantar da traição nacional. Transformaram num simples episódio jornalístico a trama para afastar Ricupero das decisões finais.
Por certo que agiram com inteligência. Com a posse de FHC, em nome do Plano Real, seu governo entregou todo o sistema nacional de telecomunicações ao capital alienígena, a pretexto da abertura da telefonia celular à população, como se ela fosse mais importante do que o sistema de comunicações por satélite, essencial à nossa preservação como nação independente. Deu às empresas estrangeiras as mesmas prerrogativas da empresa brasileira. Abriu o capital da Petrobrás. Alienou a Vale do Rio Doce e a Companhia Siderúrgica Nacional, entre outras empresas estatais. Chegou a extinguir a navegação de cabotagem e paralisou projetos fundamentais para o desenvolvimento da Amazônia e do Pantanal. Suprimiu direitos sociais aos montes. Permitiu a remessa de lucros sem limites para o exterior. Admitiu o ingresso de bancos multinacionais que em pouco tempo dominaram o mercado, direta ou indiretamente.
Tudo isso ficou sendo, para os perdedores, o objetivo do Plano Real que agora comemoram. Mudaram uma estratégia de combate à inflação para a conspiração elitista de domínio econômico.
Por tudo isso não são os vencedores que andam escrevendo a História, apesar de o governo Lula seguir em gênero, número e grau as diretrizes traçadas. Pelo contrário, são os perdedores, já que a atual crise econômica mundial acaba de tornar em frangalhos a conseqüência da efêmera farsa adotada quinze anos atrás em nome do combate à inflação. No mundo inteiro, desfaz-se a ilusão da prevalência indefinida do capitalismo selvagem. O neoliberalismo saiu pelo ralo. O Plano Real foi um sucesso ao debelar a inflação. Mas um fracasso dos perdedores que imaginam valer-se dele para continuar escrevendo uma História ultrapassada.