Para o filósofo Emil Cioran, a curiosidade do primeiro homem nos foi fatal

Bar do Bulga: Emil Cioran

Estudos de |Emil Cioran nos guiam pela Pré-História

Luiz Felipe Pondé
Folha

A definição mais conhecida de pré-história é: um tempo social em que o Sapiens não havia adentrado o mundo da escrita. Normalmente, nos referimos a pré-história como cerca de 4.000 ou 5.000 a.C. —o neolítico—, ou seja, antes da escrita ter sido inventada na Mesopotâmia. A “era de ouro” do surgimento do Sapiens moderno, como se fala, é localizada entre 80 e 70 mil anos atrás, no paleolítico médio ou paleolítico superior.

Se a pré-história acaba com o surgimento da escrita, a consequência imediata de tal critério é que ela pode ter vindo até 3.000 ou 4.000 anos atrás nas ilhas britânicas, onde havia populações sem escrita, assim como há menos de 2.000 anos nas Américas, ou mesmo até ontem, quando existiam populações ainda sem escrita.

EFEITOS COLATERAIS – O estudo sistemático da pré-história tem efeitos colaterais. A arqueóloga francesa Sophie A. de Baune costuma dizer que se cria uma personalidade epistemológica específica em quem se dedica a pré-história. Isto é, certas marcas no modo de enxergar o mundo.

Dois exemplos, entre tantos, são evidentes dessa “personalidade epistemológica” em questão. O primeiro é a ruína da percepção de tempo. Contrário à tendência moderna de achar que o mundo começou com a Revolução Industrial, nos anos 1960 ou na era digital, a pré-história nos ensina que a duração do tempo é imensa, o que nos faz perceber o caráter efêmero dos acontecimentos históricos presentes.

Ligado a este, assim como aqueles que viveram há 40 mil anos viraram pó, o mesmo poderá acontecer conosco, principalmente se levarmos a civilização e o meio ambiente à barbárie, como estamos levando.

CONTROVÉRSIAS – O fato é que há grandes controvérsias entre os especialistas no tema, o que só enriquece a área. Há aqueles, como o arqueólogo sul-africano David Lewis-Williams, para quem as cavernas com pinturas feitas por nossos ancestrais pré-históricos devem ser vistas como catedrais. Quando nelas penetramos, devemos manter a mesma reverência que em qualquer outro templo religioso.

Para Lewis-Williams não era simples arte, mas arte movida por estados alterados de consciência, que anunciavam nossa vida espiritual tal como conhecemos na história. Esta ideia está longe de ser consensual, apesar de que ela tem sua validade e beleza interpretativa.

Mas, independente desse “adendo espiritual” à arte das cavernas, o fato é que, provavelmente, quando começamos a pensar, devemos ter achado tudo isso estranho, e, possivelmente, muitos de nós devem ter assumido que nossos pensamentos eram vozes na nossa cabeça —como, até hoje, muitas pessoas assumem que Deus fala com elas em pensamento ou mesmo os espíritos dos mortos em sonhos. O que nos leva de volta ao possível vínculo entre surgimento do pensamento e a crença que entidades falavam conosco “dentro” da nossa cabeça.

VOZES AO VENTO – O arqueólogo britânico Paul Pettitt usa a imagem de “vozes ao vento” para esses eventos, e mais, concebe mesmo que essas “vozes ao vento” podem ter sido um dos primeiros sinais do que muito mais tarde foi denominado religião. Vozes em nossa cabeça ou ao vento pressupõem a escuta e atenção dada a eventos em que uma linguagem invadia o mundo.

Uma questão assaz interessante é aquela trazida por especialistas que olham de modo dissonante para o avanço do Sapiens moderno a partir dos 80 ou 70 mil anos atrás.

O historiador Harari já havia “brincado” com a ideia de que o clímax da humanidade teria sido o paleolítico superior. O arqueólogo belga Marcel Otte, especializado em religião na pré-história, chegou a escrever um livro —”Les Néandertaliens, L’âge d’or en Europe”— no qual ele levanta a hipótese de que a era de ouro da Europa foi os anos em que os neandertais dominaram o continente.

SUPERIORIDADE – Nossos primos irmãos, extintos por volta de 40 mil anos atrás sem que saibamos com precisão a causa, teriam um comportamento menos predatório. A “superioridade” dos neandertais estaria ligada ao fato que eram mais pacíficos, menos ambiciosos tecnicamente, menos obcecados pelo que chamamos de “conhecimento” ou ansiavam menos pelo poder sobre a natureza e viviam sem sistemas políticos grandiosos.

Pouco importa se a causa desse fato tenha sido menos capacidade fisiológica para a fala ou pensamento, o que importa é que a “evolução do Sapiens” pode ter sido uma catástrofe vista a partir de hoje. Enfim, o silêncio dos neandertais era maior, e o mundo menos invasivo psicologicamente. Mas, ainda assim, desapareceram.

Aqui, Otte segue de perto o filósofo romeno Emil Cioran, para quem a curiosidade do primeiro homem nos foi fatal. E a extinção do Sapiens, inevitável.

4 thoughts on “Para o filósofo Emil Cioran, a curiosidade do primeiro homem nos foi fatal

  1. Além de sair do nada pra chegar a lugar nenhum, o texto de Pondé relata equivocadamente que ‘a Revolução Industrial começou nos anos 1960 (…)”.

    A Revolução Industrial, na verdade, começou por volta de 1760 na Inglaterra e se estendeu até cerca de 1840.

    Essa fase marcou a transição para novos processos de produção, com a introdução de máquinas e o desenvolvimento de indústrias.

    • Não passa por sua cabeça que “1960” foi claramente um erro de digitação? O texto é excelente mas não é o tipo de texto escrito para o entendimento de qualquer sapiens.

    • Panorama, não se trata de erro de digitação, nem erro de nada. O texto, na publicação original na Folha, é: “achar que o mundo começou com a Revolução Industrial, nos anos 1960 ou na era digital,”. Percebe-se claramente, pelo contexto do artigo, que o autor quer dizer – achar que o mundo começou OU na Revolução Industrial OU nos anos 1960 OU na era digital.

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