Sem olhos em Gaza, Israel avança como Sansão no clássico de John Milton

Cadáveres ambulantes': Fome prolongada em Gaza ameaça devastar geração  inteira de palestinos com danos permanentes

Muitas crianças são cadáveres ambulantes em Gaza

Mario Sergio Conti
Folha

Ali nasceu a civilização do Livro, a religião de Moisés, a de Cristo e a de Maomé. A partir dali a civilização de Averróis se propagou até a Península Ibérica, preservou a sabedoria grega quando a longa noite da Idade Média desceu sobre a Europa. Fica ali Gaza.

Hoje se amontoam ali os detritos daquilo que se teima em chamar de civilização. No século 17, Milton escreveu em “Sansão Agonista” que em Gaza a treva apagou o meio-dia, enegreceu o sol, “um eclipse total matou a esperança de luz”.

NÚMEROS SURREAIS – Morreram ali 61 mil palestinos desde 7 de outubro de 2023, o dia em que o Hamas trucidou 1.250 israelenses.

A Unicef estima que 50 mil crianças foram feridas ou mortas. As 320 mil com menos de cinco anos correm risco de desnutrição severa. Em média, morrem de inanição 28 delas por dia. Mais de mil adultos foram assassinados a bala ao redor dos postos de distribuição de comida geridos por Israel.

Em si tenebrosos, esses números não dão conta da bancarrota moral que o mundo acompanha online. A apatia diante da dor de milhares é sintoma de uma crise de valores profunda. Porque a fome foi deliberada e planejada em minúcia, é infligida com método.

FOTOS E VÍDEOS – Muito mais que os números, fotos e vídeos de Gaza dão a verdadeira dimensão da catástrofe em andamento. Nelas, choram madonas com bebês esquálidos no colo. Meninas só pele e osso zanzam agoniadas com panelas vazias. É com a cólera de cães que maltrapilhos disputam punhados de farinha.

França, Inglaterra, Japão e outros 25 países denunciaram Israel por, como escreveram, “prestar ajuda com conta-gotas”, causar “a morte desumana de civis, inclusive crianças”. Nos Estados Unidos, 300 sobreviventes do Holocausto, ou seus descendentes, publicaram um protesto. A Alemanha suspendeu a venda de armas que Israel ali dispara.

Binyamin Netanyahu não se deu por achado. Desmentiu a crise humanitária e anunciou que ocupará Gaza inteira. O jornalista Amit Segal, uma espécie de porta-voz extraoficial do primeiro-ministro, disse que a crise humanitária é “propaganda” do Hamas.

DURO ACREDITAR – Numa coluna publicada na Folha, Thomas Friedman lembrou que Israel há pouco matou dez oficiais e 16 cientistas iranianos em suas casas. Perguntou: se acertou alvos “a 1.900 km de Tel Aviv, como não consegue distribuir caixas de comida a famintos de Gaza, a 64 km?”.

Para ele, não foi acidente, e sim “algo bastante vergonhoso”: “chegamos ao ponto em que um Estado judeu democrático, descendente em parte do Holocausto, está envolvido numa política de provocar fome”.

Como sempre faz, Friedman distinguiu o governo —”uma coalizão de extrema direita”— do Estado, da opinião pública e do povo. Embora sejam de fato instâncias diferentes, isso não significa que falta apoio popular ao uso da fome como arma de guerra, ao morticínio.

OUTRAS VÍTIMAS – Emmanuelle Elbaz-Phelps, jornalista franco-israelense, testemunhou esse apoio num programa de debates no canal 13, um dos mais vistos no país. No início do mês, o tema em discussão eram os reféns do Hamas, os soldados que morreram no conflito, as vítimas israelenses em geral.

Ela lembrou que havia outras vítimas, os palestinos. Um âncora a interrompeu: “Vamos em frente, já ouvimos o bastante”. A jornalista insistiu e outra apresentadora atalhou: “Emmanuelle, te respeito muito, mas não tenho que me preocupar com o que acontece em Gaza. Eles são meus inimigos”.

Ela levou fotos de Gaza a um programa posterior. O âncora nem quis vê-las. Afirmou que se preocupava com as crianças israelenses, e não com as de Gaza. A empatia dela com os palestinos, prosseguiu, mostrava que se esquecera do 7 de outubro. Concluiu: daqui a alguns anos, os garotos esfomeados das fotografias “irão tentar nos matar”.

FERIDA ABERTA – Entrevistada há dias pelo New York Times, Elbaz-Phelps falou que a postura de seus colegas na televisão era representativa do modo de pensar da maioria dos israelenses. Quem vive fora do país não sabe o quanto a lembrança do 7 de outubro ainda dói, avaliou. A ferida não fechou.

A jornalista estivera havia pouco em Nir Oz, o kibutz onde o Hamas mais matou: um a cada quatro dos moradores fora assassinado ou sequestrado. As casas queimadas pelos terroristas continuavam enegrecidas, em escombros.

“Sente-se ainda o odor daquele dia”, disse ela. O trauma não passou e “a maioria dos israelenses não tem espaço no coração para sentir compaixão por Gaza”. Como o Sansão da poesia de John Milton, Israel está “sem olhos em Gaza”, cego para a dor alheia.

4 thoughts on “Sem olhos em Gaza, Israel avança como Sansão no clássico de John Milton

  1. E os astrônomos receiam que algum objeto alienígena surja para atrapalhar — ou encerrar de vez — nossas brincadeiras neste playground “civilizado”, essa engenhosa invenção humana onde nos orgulhamos de leis, tratados e discursos pacifistas, enquanto promovemos guerras intermináveis, testamos armas sobre cidades, exterminamos povos inteiros e transformamos a história em um álbum ilustrado de massacres, tudo sob a etiqueta impecável de ambições de poder, política e riquezas.

    • Os reféns do Hamas estão limpinhos e cheirosos e de cabelo cortado e só Israel que mata mata a tiros, bombas e porradas as crianças palestinas.
      A primeira vítima da guerra é a verdade.

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