
Charge do Junião |(junião.com.br
Marcus André Melo
Folha
A Constituição de 1946 determinou que, pela primeira vez, 10% do Imposto de Renda fosse distribuído aos municípios, exceto os das capitais. Foi a primeira versão do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
O pai da proposta, o deputado pernambucano Barros Carvalho, criticou aqueles que afirmavam que “os prefeitos iriam enfiar aquela verba no próprio bolso”. Argumentou: “É possível que alguns bandidos e aventureiros se apossem também do dinheiro da quota federal. Será um mal, mas um mal menor do que o abandono em que União deixa o interior do país. (…) Se roubarem hoje a quota federal, ainda assim o dinheiro vai fazer uma redistribuição regional da renda, vai ficar na região, o prefeito ladrão acaba sempre montando uma descaroçadeira de algodão ou uma olaria, e construindo uma estrada ou um açude para sua fazenda”.
AÇÃO COLETIVA – Barros Carvalho, ao mesmo tempo que parecia apontar o “rouba, mas faz” e o chamado “trickle down” (respingamento do desenvolvimento), também se referia a um dilema de ação coletiva: se as outras regiões estavam se beneficiando da corrupção, melhor que todos também o fizessem.
Ele era otimista e há alguma evidência de que seu argumento tenha um grão de verdade; conjeturava que a melhoria local engendraria os controles democráticos: “vai melhorar a qualidade de vida do lugar e das pessoas, que um dia saberão fiscalizar os políticos ladrões”. O dilema é universal como reconciliar equidade territorial com controle e eficiência.
As transferências passaram a 15%, em 1961, e ampliaram-se os impostos transferidos; em 1966 e 1993 chegaram a 23%.
ENFIM, AS EMENDAS – As transferências discricionárias multiplicaram-se e hoje se concentram nas emendas orçamentárias que respondem por mais de 1/3 do gasto discricionário.
Mas ao lado da corrupção local, municipalizada, existe a “federal”. Antônio Callado, em “Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco” (1960), livro-reportagem que virou best-seller, observou que em todo o Nordeste “federal” é sinônimo de coisa grande, fabulosa. E completou: “A algum dicionarista interessado em apurar a origem dessa gíria, sugiro que a fonte são os feitos do DNOCS, são os colossais açudes, as estradas e os escândalos”.
O grande escândalo, mesmo territorialmente delimitado, é “federal”. Utilizo federal aqui, no entanto, também em outro sentido, complementar devido à escala, para aquele em que os protagonistas estão no Executivo federal como o Petrolão e agora o Descontão do INSS, no qual as cifras podem chegar a R$ 90 bilhões.
CORRUPÇÃO GENERALIZADA – Disseminou-se a ideia — que não é desinteressada — de que a corrupção se manifesta sobretudo em transferências a localidades interioranas do Brasil arcaico, onde os controles são débeis. Nada mais longe da verdade. Essa é apenas uma das suas manifestações.
O controle imaginado por Barros Carvalho, que viria com o desenvolvimento econômico, nunca foi efetivo aqui. Houve avanço, sim, mas sofreu enorme retrocesso nos últimos anos. A estrutura de incentivos passou a ser “liberou geral”.
E não podia ser diferente após a anulação generalizada de evidências da Lava Jato, e o foco deslocado para as questões da democracia. Paradoxalmente, a defesa desta tem perversamente cumprido o papel de enfraquecer o controle da corrupção.