
Parlamento assume a função de fiador da impunidade
Marcelo Copelli
Revista Fórum
O que irrompeu no plenário da Câmara nesta quarta-feira não foi apenas mais um sobressalto institucional, mas a crua exposição de uma ruptura que atravessa o núcleo da República. Pela primeira vez desde a redemocratização, o Congresso atuou de forma explícita para remodelar crimes, aliviar responsabilidades e reabilitar protagonistas de uma violência política que tentou implodir a ordem constitucional. Ao fazê-lo, abandonou o papel de contrapeso estabelecido pela Constituição e assumiu o de acelerador de retrocessos — uma inflexão que rompe, de maneira inédita, com o pacto democrático firmado em 1988.
A sessão que reduziu penas de Jair Bolsonaro e abriu caminho para a anistia dos articuladores do golpe não é um desvio: é um método. A oficialização de um pacto regressivo. O instante em que o Parlamento abandona qualquer pretensão de proteger a democracia e passa a reescrever seus limites conforme os interesses que preservam seus caciques. O Legislativo, que deveria fiscalizar abusos, converte-se em fiador deles — transformando a própria responsabilidade penal de atores poderosos em um objeto maleável, ajustável e politicamente negociável.
PARCIALIDADE – No centro dessa guinada está Hugo Motta. Sua presidência já não abriga sequer a aparência de imparcialidade. Opera como peça do Centrão, mas se comporta, cada vez mais, como extensão da ultradireita que o sustenta — e que cobra demonstrações públicas de submissão. A violência contra o deputado Glauber Braga, a expulsão dos jornalistas e o corte das câmeras não foram desvios: foram declarações de poder. Sinais calculados de que Motta está disposto a sacrificar instituição, liturgia e democracia para preservar o arranjo que o ampara e garantir sua sobrevivência política.
A anistia não surgiu do improviso; foi desenhada. O Congresso decidiu deslocar a violência política do campo do delito para o da permissividade. Em vez de erguer diques contra novas rupturas, escolheu suavizar crimes, reescrever fatos e reintegrar ao centro do sistema os mesmos agentes que conspiraram contra ele. Ao revisitar penas, o Parlamento não apenas absolve — normaliza. Não apenas perdoa — autoriza. E, ao adotar esse padrão, converte a ruptura institucional em tática aceitável de disputa política, enviando ao país a mensagem de que golpes podem — e serão — reeditados sem custo.
É nesse ambiente que o episódio envolvendo Glauber Braga expõe, com precisão cirúrgica, a estrutura real de poder na Casa: um regime de dois pesos e duas medidas. O problema não é o gesto do parlamentar — é a hipocrisia institucional. Quando a extrema direita ocupou a Mesa, ameaçou colegas e instaurou o caos, a Presidência silenciou — sem cortes, sem reprimendas, sem pudor. Mas quando Glauber toca no nervo exposto do orçamento secreto e denuncia a aliança entre Centrão e bolsonarismo, o rigor se torna imediato. A ordem existe apenas para punir quem ameaça o pacto — nunca quem o sustenta.
ARTICULAÇÕES – Esse padrão consolidou a arquitetura de poder que dirige a Câmara: o bolsonarismo, acuado judicialmente, aporta militância, coerção e tumulto; o Centrão garante blindagem regimental e domínio das estruturas internas; e Hugo Motta, posicionado entre ambos, atua simultaneamente como operador e refém. Exibe força apenas contra a oposição. Diante da ultradireita, curva-se — porque sua Presidência depende da obediência e da entrega constante.
A família Bolsonaro é peça estratégica desse mecanismo. Para viabilizar a anistia, o ex-presidente reorganiza o PL, pressiona a bancada e negocia como quem ainda dita os rumos da direita. Flávio negocia suas ambições presidenciais para preservar o pai. O objetivo é transparente: manter a ultradireita ativa, articulada e impune dentro do sistema — e preservar, intacta, a possibilidade de retorno ao poder.
O resultado é um Parlamento que não freia o extremismo — o serve. E, ao fazê-lo, sacrifica sua própria integridade. A Presidência da Câmara adota práticas típicas de regimes autoritários: restringe a imprensa, apaga registros, reprime opositores e obscurece a dinâmica decisória de uma instituição que deveria ser luz, não sombra. O coração da República se converte em um bunker de opacidade e intimidação, onde regras deixam de ser garantias e passam a ser armas de conveniência.
NARRATIVAS – Nada disso é espontâneo. É uma transição estruturada: um Legislativo que reescreve crimes, altera a narrativa da violência política e reposiciona o golpismo como algo administrável, negociável — e, na prática, justificável. A anistia é apenas o símbolo mais visível de uma inflexão mais profunda, em que a ultradireita, derrotada nas urnas, volta a governar pelos subterrâneos da Câmara e pelos atalhos regimentais que o Centrão domina.
O Brasil se aproxima de uma encruzilhada decisiva. Se aceitar que a Presidência da Câmara opere como instrumento de intimidação e como braço político da ultradireita, a democracia não perderá apenas amplitude — perderá sustentação. O que se consolidou nesta sessão não é um erro: é um sistema. A institucionalização de uma erosão democrática paciente, metódica e cúmplice — o tipo de deterioração silenciosa que transformou democracias ao redor do mundo em cascas formais de si mesmas.
E, se não houver reação, a democracia brasileira não ruirá em um único golpe. Será corroída lentamente — administrada por um Congresso que absolve o passado golpista para pavimentar o futuro de um extremismo que não admite derrota e transforma o medo em política de Estado. Democracias raramente morrem por explosão. Morrem por revisões discretas, aprovadas à noite, sob aplausos cúmplices.
O progresso sustado, conforme:
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Quando, ficarão curados dessa pandemia?