
Ilustração do Abu (FolhaPress)
João Pereira Coutinho
Folha
Festejar os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial em Praga, capital da República Tcheca, é um espetáculo tocante e solene. Por toda a cidade encontro filmes, debates, homenagens, lembranças. Sim, o conflito começou quando os nazistas invadiram a Polônia. Mas a Tchecoslováquia significou o fim das ilusões: Hitler não se contentou com a região dos sudetos e, rasgando o acordo de Munique, devorou o resto da Tchecoslováquia. A guerra tornou-se inevitável.
Há aqui alguma lição para o presente? Claro que há, e os tchecos sabem disso. Não é por acaso que as bandeiras da Ucrânia já fazem parte da paisagem, ondulando nas casas, nos carros, até nos edifícios públicos.
AGORA, NA UCRÂNIA – A experiência tcheca em 1938, quando os “apaziguadores” sacrificaram um pedaço do país para comprarem “paz para o nosso tempo”, será repetida na Ucrânia, quando 20% do seu território for entregue a Putin numa bandeja dourada.
A grande diferença é que Volodimir Zelenski estará presente. Em 1938, o presidente tcheco Edvard Beneš nem sequer foi convidado para o seu próprio funeral.
Nada que perturbe Lula da Silva, eu sei. Em entrevista para a revista The New Yorker, o presidente brasileiro partilha as suas preocupações com o estado da democracia no Ocidente, sem falar na Ucrânia.
DIZ LULA – A ordem liberal construída depois de 1945, baseada no multilateralismo e no direito internacional, está hoje em risco, lamenta Lula. A soberania de cada país encontra-se sob ameaça e as regras já não são respeitadas por todos.
Meu coração parou. Violação de soberania? Desrespeito pelo direito internacional? Ó, deuses, será este o momento em que Lula critica Vladimir Putin, um especialista em tais crimes?
O coração voltou a bater: o rosto da degradação democrática está em Washington, não em Moscou. Com Donald Trump, os Estados Unidos deixaram de ser um exemplo em matéria democrática. Sejamos justos: não é todos os dias que Lula qualifica os Estados Unidos como um exemplo para o mundo. Um cínico diria que, só por essa iluminação, já valeu a pena a eleição de Donald Trump.
O COVEIRO – Aliás, para continuarmos justos, é evidente que o Donald merece todas as críticas. Em política externa, ele tem sido o coveiro da ordem liberal que Lula tanto preza.
E, internamente, os Estados Unidos vão resvalando para o “autoritarismo competitivo” que normalmente associamos à Hungria, à Venezuela ou à Turquia.
Para os cientistas políticos Steven Levitsky, Lucan Way e Daniel Ziblatt, “resvalar” é verbo modesto. O governo Trump já cruzou essa linha ao usar a força coerciva e legal do Estado para ameaçar e perseguir quem não se verga ao novo imperador. “Autoritarismo competitivo” é isto: ainda há eleições, mas o preço de fazer oposição ao governo aumenta dramaticamente.
NADA SOBRE UCRÂNIA – Infelizmente, em toda a reportagem da New Yorker, não há um pensamento, uma palavra, um mero suspiro de Lula sobre a mais sangrenta ameaça à ordem liberal: a invasão da Ucrânia pela Rússia.
É uma ausência ruidosa, quase cômica, que cancela suas declarações românticas sobre liberdade ou democracia. Mal comparado, é como imaginar uma versão de Lula nos anos 30 do século passado que, perante as evidências, nada teria a dizer sobre as predações de Mussolini na África, sobre o expansionismo de Hitler na Europa ou sobre as agressões japonesas na Ásia.
Seria um Lula cego, surdo e mudo perante os três conflitos regionais que mundializaram rapidamente —e tragicamente. Pior ainda: não só estaria cego, surdo e mudo como seria possível encontrá-lo, sorridente, nas paradas militares de Roma, Berlim ou Tóquio, convivendo tranquilamente com os três déspotas daquele tempo.
“REALPOLITIK” – Espíritos mais refinados dirão que é tudo “realpolitik”: o que teria o Brasil a ganhar com críticas a Putin? Arrisco uma resposta “realista”: seguramente mais do que o Brasil tem a ganhar com esses insultos à União Europeia — bloco comercial que, na hierarquia dos interesses, talvez seja mais importante para o Brasil.
A noite cai em Praga. Na praça da Cidade Velha, a poucos metros do relógio astronômico que encanta os turistas, passam imagens numa tela gigante das destruições do passado.
Não são imagens muito diferentes da destruição que Putin tem semeado entre os civis da Ucrânia, enquanto sequestra as crianças do país para serem devidamente “russificadas”. Um dia, daqui a 80 anos, nossos filhos contarão a história do nosso presente. O lado onde escolhemos estar será lembrado por eles.